“LONGE DO CENTRO”
Residência Artística no Centro do Cabo do Mundo, Manteigas, Portugal
Participar numa residência Artística é sempre uma oportunidade única de conhecer e vivenciar novos territórios, pessoas e culturas. Nesse movimento do corpo em direcção a uma nova realidade importa avançar livre de preconceitos e disponível para o encontro.
Quando iniciei a viagem, em finais do mês de Julho, rumo à Serra da Estrela, para participar na residência artística no Centro do Cabo do Mundo, em Manteigas, coloquei na minha mochila de viagem três objectos: um desenho da minha filha Carolina, de três anos, para recordar-me da importância de se ser espontâneo; uma camisa florida para atrair abelhas – sem polinização não há fruta; e por fim o protótipo de um livro de fotografia da minha autoria, composto por planos das mãos da minha avó a trabalhar numa inspiradora simbiose com a natureza.
O tempo de residência dividiu-se em dois momentos: o primeiro em Sabugueiro, que serviu para o reconhecimento do território e para a recolha de materiais, tendo decorrido entre os dias 27 de julho e 2 de agosto; e um segundo momento, entre os dias 7 e 20 de Setembro, em Manteigas, em que a exploração, a produção e a restituição culminou numa exposição final.
Foram três semanas a palmilhar entre montes e vales, em ambientes arborizados ou quase desérticos, em que o granito alternava com o xisto na estrutura maciça que compunham as montanhas. Serpenteando a superfície acidentada, os riachos e as levadas corriam calmamente ao encontro de lagoas, campos e rios. Nesta imensidão, que configura a Serra da Estrela como território natural, os sinais do homem são pontuais e limitam-se a grandes construções hídricas, raros campos cultivados, sinais discretos de ovelhas, cabras e pastores, entre trilhos sinalizados ou livres.
Neste “Vai e Vem”, entre o mundo natural e o mundo habitado, fui encontrando pessoas com as quais troquei palavras, sempre amáveis e profundamente enraizadas no lugar. Recordo-me de um pastor, de alcunha “Correntes”, que ao longe guiou-me ao encontro de um trilho perdido, gritando: – “à direita; à esquerda; em frente…”; ou ainda da Sra. Ilda, com 80 anos, que cruzei perto das 21h a caminhar, no meio da estrada de alcatrão, com um braçado de ramos secos sobre a cabeça. Gentilmente ela brindou-me com um conjunto de histórias avulso sem nunca deixar descansar a carga. Ou do Sr. António que confessou-me que aos 16 anos levantava-se diariamente às três da manhã para atravessar a montanha e ir trabalhar na construção de uma barragem.
O que resulta dessas experiências concretas e imersivas, enquanto produção artística, são um conjunto de peças fortemente ancorada na relação do corpo com o espaço-tempo da residência, designadamente desenhos que tratam temas tão diversos como transumância, tosquia, montanhas a dormir, montanhas rasgadas, casas encostadas a penedos, paredes de granito ou ainda composições feitas de objectos encontrados, tais como, crânio de cabra, uma pá enferrujada, pedaços de madeira e ferragens, protetores de ouvidos, assim como um aquário de naturezas mortas. Foram igualmente produzidas três esculturas com seixos provenientes dos rios Zêzere e Alva, aludindo à difícil tarefa de construir em contexto montanhoso. Surgiu ainda, durante o processo criativo, uma instalação, construída a partir de um Yuca decapitado, da sala de exposições municipal e do lixo recolhido durante as minhas caminhadas. E, por fim, um conjunto de fotografias de paisagens diversas e a edição de um vídeo “Linha de Água” composto por cinco planos relacionados com “caminhos de água”.
A residência culminou numa exposição final na galeria municipal de Manteigas, entre os dias 18 e 20 de setembro. Esta mostra teve como intuito, restituir ao público as experiências vivenciadas durante as três semanas de residência. Tratou-se acima de tudo de uma partilha de sentidos em que o público foi convidado a percorrer o espaço expositivo como se estivesse numa caminhada, num trilho de paisagens condensadas.
Alcobaça 25 de outubro de 2020
Thierry Ferreira