Terra, Quase Galeria, Espaço T, Porto

TERRA

TERRA

Exposição “Terra”

26/09/2025 > 11/11/2025

Quase Galeria / Espaço T, Porto

Curadoria: Maria de Fátima Lambert



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A Terra de Thierry Ferreira

 

“Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime.

Tudo o que diz o que não diz,

E a alma sonha, diferente e distraída.

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!)”

Álvaro de Campos/Fernando Pessoa. Poesias. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993), p. 51.

 

A terra entrou na sala. O fora converteu-se em dentro. Thierry Ferreira trouxe para a Quase Galeria pedaços do território, substâncias e materiais que residem no nosso entorno. Agarrando em torrões de terra, alquimicamente, trouxe-lhes um alento poético.

O que é a Terra com maiúscula que difere da terra com minúscula? A Terra equivale a esse globo que nos ensinaram. Afinal é a Terra que gira em torno do Sol, exclamava-se. Esse round and around que nos fascina tanto quanto se destrói e entristece. A Terra é um globo de plástico onde se aprendem território e autonomias que divergem na História. Os mapas – apesar de planificados, também encarnam os dinamismos que despenteiam os países.

Neste projeto específico que configura a sala como um todo, onde cada obra, cada peça cumpre o seu desígnio, transformou-se num magno pensante. Como pessoas, entrando nessa Terra que é de outrem e, simultaneamente, de cada um, destacamos os elementos que nos seduzem ou amedrontam. Outorgamos-lhes qualidades e neles reconhecemos similitudes, afinidades ou confrontos. Da terra sai o barro que, compactado e, depois, a dissolver-se, experimente a magia da mão que o toca. Como visitantes, poderemos esculpir esse produto resgatado da terra, o barro que agarra os nossos vestígios. O barro passa a conter as nossas impressões, nele gravamos as nossas evidências das mãos. Marcamos, nessa pasta húmida que amacia a pele, compartilhamos pequenas identidades: modelamos com leveza ou com violência que nos solta. Pertencemos sempre à terra que é da Terra.

De algum modo, talvez de muitos, retrocedemos até ao mais originário: a ação de premir, de pressionar, de imitar as formas dos corpos, dos animais ou dos arvoredos. Vemos na pasta de barro, os rastos desprendidos de grandes secas, a aridez desertificada da desumanidade. A terra faz-se em pó.

É o pó da terra que serve a pintura, regularizada geometricamente por estruturas de pensamento que funcionam como uma linguagem visual em prol de ser civilizada. De ser compreendida, como se fosse necessário pensar com a razão e não bastasse o cheiro a barro, a moleza do tato, a cor densa que se agarra às palmas das mãos ou à pele da pintura que é o papel de lixa. Alisamos as ideias, todavia, as asperezas perpassam: perduram ainda que dissimuladas como o impacto de frases silenciadas.

As estruturas geométricas são sólidos irregulares que nos evocam a sabedoria oculta da Divina Proporção  de Luca Paccioli, ilustrada pelos poliedros de Leonardo da Vinci. Talvez essas linhas tridimensionais que se desenham rigorsamente no espaço fixo sejam visões organizadas de uma Terra (leia-se mundo) perfeito. Quando se acreditava que a sabedoria equivalia à justiça e ao bem comum.

Regularizar o tempo e o espaço, medir o compasso das ideias, constituir-se em trabalho artístico que se assemelha a um Livro de Horas. Ao ouvir os testemunhos de Thierry Ferreira aercebemo-nos de quanto a disciplina do processo poiético comunga na identidade, em exitir por ser e estar.

Habitamos num globo amachucado e gretado que não é uma esfera: desvia-se da harmonia e assegura a organicidade das plantas que crescem e se revoltam com os fios condutores. Todavia, com argúcia, o globo a esbracejar pode sustentar-se. O globo habita a casa, como decoração e instrução. A casa, inventada pelas mãos de Thierry é de barro. Regular, com as tais estruturas que se deixam revestir, ergue-se, persiste e ilumina-se. Todavia, como se fosse agitada por um terramoto de ideias, começa a desagregar-se. A casa de adobe que soçobra na enxurrada – lembremo-nos do destino trágico de Isabelle Eberhardt, a viajante que sedentarizou a alma. A típica casa de barro em que Louise Bourgeois e, também, Antony Gormley encaixaram as cabeças dos corpos jacentes de suas esculturas. Pois que o nosso corpo não entra na casa que tem as nossas dimensões: a cabeça teima em diminuir-se, mas que, de todo, não é como os gatos que passam nas frinchas das janelas para respirar liberdade. Não somos assim maleáveis, somos teimosos e encravamo-nos nos espaços que queremos domesticar e nos possuem.

Então, a casa de Gaston Bachelard (Poétique de l’Espace) clama pelos devaneios, pelas fantasias da Terra, como elemento privilegiado. Contudo, a terra precisa da água para se moldar a existir mormente e diversa. A terra esculpe-se nos desenhos pulsionais que são regimentados por conceções assimiladas e que não precisamos de chamas, pois estão connosco, como uma espécie de mapa mental invisível, leve pois não somos nenhum gigante Atlas a carregá-lo. Somos criaturas pensantes, cujos afetos auxiliam a passagem das horas, constituem esse fio do tempo que se espacializa dentro e, após suas reverberações ponderadas damos a conhecer (parcialmente).

Somos gente, individuados e imperfeitos; a deixarmos, por ou sem negligência, as marcas dos nossos rostos na respiração de uma janela embaciada. Thierry Ferreira, após ter trabalhado com suas mãos a terra humedecida, limpou-as a um pano e tapou o rosto com alguma veemência. No pano ficaram os vestígios, como se de um sudário se tratasse.

Todo artista é regido por suas próprias leis, mas estas não são, em absoluto, obrigatórias para as demais pessoas. De qualquer modo, fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte — a menos, por certo, que ela seja dirigida ao “consumidor”, como se fosse uma mercadoria — é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual é o significado da sua existência.

Andreii Tarkovski, Esculpir o Tempo, 1998, p.34

O rosto torna-se indecifrável. Haverá que o desvelar, nessa amálgama de tonalidades arrastadas que deixam o sopro da vida a cantar na caminhada do silêncio.

Será que o drama contemporâneo não vem do fato de que o desejo de errância tende a ressurgir como substituição, ou contra o compromisso de residência que prevaleceu durante toda a modernidade? (Maffesoli, Sobre o Nomadismo, 2011, p. 22).

Mas a casa que é feita de terra e água, na sua primeva decisão, quando o nomadismo (Michel Maffesoli dixit) se aquietou e tomou posse de um perímetro de território, invoca o ar e o fogo para civilizar-se. O fogo que acarinha o saber, tal como ensinou Prometeu, não o que destrói a liberdade. E precisa de ar para ter nuvens benfazejas, para vermos os ciclos do ano, as estações a esgadanharem-se pois querem durar.

As aventuras da Terra/terra de Thierry Ferreira usam episódios que a nossa imaginação queira ou possa. Vamos esculpir o tempo, como avisou Andrei Tarkovsky ou aquiescer que o tempo, é esse grande escultor – parafraseando Marguerite Yourcenar.

“No dia em que uma estátua é acabada, começa, de certo modo, a sua vida. Fechou-se a primeira fase em que, pela mão do escultor, ela passou de bloco a forma humana; numa outra fase, ao correr dos séculos, irão alternar-se a adoração, a admiração, o amor, o desprezo ou a indiferença, em graus sucessivos de erosão e desgaste, até chegar, pouco a pouco, ao estado de mineral informe a que o seu escultor a tinha arrancado.”

Marguerite Yourcenar – O Tempo esse grande escultor, Lisboa, Difel, 1984

Maria de Fátima Lambert

Terra, Quase Galeria, Espaço T, Porto

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Terra, Quase Galeria, Espaço T, Porto

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Memória Descritiva  

“Terra” é o nome do planeta que possibilita a existência humana, mas também designa a matéria primordial que sustenta a vida, permitindo ao homem alimentar-se e permanecer enraizado. É a partir desta palavra – Terra – e da própria substância que esta exposição se constrói e se apresenta. Apesar de tão familiar, esta palavra tornou-se muitas vezes banalizada, perdendo parte da sua riqueza simbólica e do poder evocativo que contém.

Num tempo de profunda transformação e incerteza, marcado por crises ecológicas, sociais e espirituais, o ser humano distancia-se progressivamente da sua relação ancestral com o mundo natural e com a terra – esse lugar que o acolhe, o alimenta, lhe dá origem e, inevitavelmente, o há-de receber de volta. A exposição propõe-se como um gesto de reconexão com essa dimensão essencial, convocando a matéria terra não apenas como recurso, mas como presença viva, dotada de memória, história e dignidade.

O projecto expositivo é composto por desenhos realizados com terra sobre lixa, que exploram a rugosidade e resistência do suporte como metáfora do esforço e do desgaste implicados no acto de criação. Inclui ainda uma instalação que mimetiza o gesto da mão sobre a terra, aberta à participação do público, convidando cada visitante a sentir, modelar e transformar, restabelecendo assim uma experiência sensorial directa com a matéria primordial.

Integra também o vídeo “Casa da Minha Terra”, no qual a terra surge como elemento central, tanto estética como formal e conceptualmente. Este trabalho apresenta diferentes abordagens criativas que reflectem sobre a tentativa humana de dominar a matéria, mas revela igualmente a frustração e a raiva que emergem do pressentimento de uma perda irreversível – a perda da relação de pertença e interdependência com a terra, a perda da casa comum.

“Terra” é, assim, uma exposição que procura evocar, sensibilizar e questionar. Evocar a memória ancestral de um vínculo que nos sustenta, sensibilizar para a experiência táctil, visual e espiritual da matéria, e questionar a forma como nos relacionamos com aquilo que, sendo o nosso fundamento, se tornou objecto de dominação e exploração. É, acima de tudo, um convite a regressar ao lugar de onde viemos – a terra como casa, alimento e destino.