O cão de guarda…
O cão piloto…
CHIEN DE FAïENCE E OUTRAS NATUREZAS MORTAS
Thierry Ferreira
Após convite para expor na Sala de Exposição da Biblioteca FCT NOVA, sentimos sempre que os artistas dedicam momentos – muito mais longos que o habitual – para observar o espaço e pensar no modo de “habitá-lo”: porque o espaço é grande, com uma luz natural que é protagonista, um pé direito de respeito, podendo ser observado de múltiplos ângulos e níveis. Desta ponderação entende-se, de imediato, que este “palco” é uma provocação, a pedir soluções quase cénicas, desafiando o autor e, posteriormente, o público.
Thierry Ferreira renovou o espaço com imaginação e contribuições múltiplas, à primeira vista díspares, como que peças de um puzzle – pontuais e singulares -, que após uma visita atenta se ajustam e se encontram, dando forma a uma narrativa compreensível.
Passeamos e reencontramos esculturas de difícil elaboração, que se misturam com um passado não muito longínquo, onde flores de plástico e cerâmicas datadas nos encaminham para memórias sentimentais. Prateleiras com “recuerdos” e pequenos (e bem divertidos) brinquedos amplificam esta ideia de nostalgia. Mas, a seguir, o autor faz uma curva e leva-nos por novos mundos, onde explora uma certa ruralidade, através de objetos e grandes pinturas em que a argila é “tinta”. A viagem continua com materiais que nos transportam para a destruição (e para a esperança de renovação), num realismo pungente e tão atual. Adicionalmente, vídeo e fotografia acrescentam ainda mais irreverência e mordacidade ao global da exposição.
E todos os objetos estão sobre o “olhar” de uma peça colocada estrategicamente na entrada da exposição: o CHIEN DE FAïENC. Ele é doce e meigo, muito atento, guarda a exposição, mas convida… É a “piéce de resistance”, no verdadeiro sentido da palavra.
A linguagem é divertida e irreverente… e dá que pensar!
José J. G. Moura
Diretor Biblioteca
2022
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Do lúdico e da leveza
A escultura tem um lugar frágil no ecossistema das artes contemporâneas. A instalação e os materiais não tradicionais vieram-lhe destruir as certezas, desmaterializaram-na e atomizaram-na, retiraram-lhe a unidade física e a sua massa. A escultura de pedra hoje parece oscilar maioritariamente entre o pretensioso e o obsoleto, ou no pior dos casos em ter uma presença completamente inócua em rotundas e lugares públicos. A escultura contemporânea de pedra enfrenta, na sua maioria, a dificuldade de encontrar uma expressão relevante, uma proposta estética e material com sentido de pertença ao século XXI.
Podemos assumir que um brinquedo é tradicionalmente um objeto sobre o qual projetamos as nossas fantasias, sobre o qual efabulamos e alteramos a função com as nossas ações. Um pau passa a varinha mágica ou cavalo ou espada conforme o contexto da brincadeira de um miúdo. Uma caneta de aparo antiga, uma pena encontrada na paisagem, uma folha seca ou um seixo são todos objetos prazerosos no seu manuseio, a que não atribuímos normalmente um valor para além do estímulo visual, matérico e potencialmente lúdico. No entanto podem despoletar ações criativas que os colocam num contexto distinto e transformativo, que os recuperam ou alteram as suas utilidades ou funções.
Tradicionalmente a escultura de pedra é monumental, imóvel e tem um peso que nos domina fisicamente. As pequenas esculturas de mármore de Thierry Ferreira são trabalhadas de modo a introduzir a leveza e o sentido lúdico, caraterísticas tradicionalmente alheias à escultura de pedra. São precisamente essas qualidades que as tornam interessantes e relevantes. A leveza a que me refiro não é a do peso mas a da atitude descontraída com que as peças parecem ter sido realizadas e do modo como as suas múltiplas possibilidades de posicionamento anulam a imposição de um ponto de vista único. Esta sensação foi exponenciada ao ver o Thierry a manejar as peças enquanto falávamos, ao entender o seu caráter manipulável e, no caso de uma das peças, pendular.
Esta possibilidade de mobilidade, autorizada pela dimensão, aproxima-as da noção jovial de brinquedo, de um objeto que nos causa prazer porque podemos ou queremos manejá-lo. Embora as esculturas não sejam peças manipuláveis durante a exposição, elas têm esse potencial no ateliê do Thierry ou noutro contexto. Imagino uma destas peças a ter várias localizações dentro de uma casa, à semelhança dos seixos e búzios que trazemos no regresso de um passeio na praia que pousamos na secretária ou no parapeito de uma janela. Isso remete para o outro aspeto destas esculturas, a aparente naturalidade na sua combinação de orgânico com superfícies planas, como se fossem objetos encontrados e não esculpidos, simples formações naturais recolhidas e organizadas sobre os tampos das mesas.
Como o desenho é o meu modo de reagir a qualquer excitação visual, não resisti a fazer um desenho rápido durante a inauguração. As peças do Thierry provocaram em mim essa reação instintiva pelo seu caráter convidativo à proximidade e ao querer indagar os detalhes, mas também porque se assemelham aos guardanapos de papel amachucados que descontraidamente uso nas pastelarias como temas de desenho. As semelhanças formais entre os guardanapos amachucados e estas esculturas consistem na transição abrupta entre zonas de arestas finas, superfícies planas e volumes orgânicos, numa total ausência de hierarquia entre as formas, uma fluidez que se traduz em pedras transformadas em presenças estimulantes, que incitam a também querer fazer escultura, mesmo que sejamos totalmente desprovidos de destreza. Todos os bons desenhos, pinturas, esculturas, filmes, livros ou músicas têm esse poder de nos fazer crer que também podemos, onde para além da fruição a criatividade é fortemente estimulada. Essa talvez seja a dimensão mais interessante das peças do Thierry, o seu convite a dialogar através do também querer fazer.
Março de 2022 Jorge Leal