A Espessura dos Dias
Galeria 5ºpiso da Caixa de Crédito Agrícola de Alcobaça
2 de maio a 2 de junho de 2022
Textos: Ana Davide e Alberto Guerreiro
Em consonância com as comemorações dos 20 anos do Centro de Estudos Superiores da Universidade de Coimbra em Alcobaça, a Galeria 5ºpiso da Caixa de Crédito Agrícola de Alcobaça acolheu, entre 2 de maio e 2 de junho de 2022, a exposição “A Espessura dos Dias” do artista Thierry Ferreira. Com o apoio do Município de Alcobaça e da própria Caixa, a mostra convidou o público a mergulhar num conjunto de obras que refletiam sobre os diversos acontecimentos que marcaram o panorama global nos últimos anos.
Inspirado no livro de Boris Vian, o título da exposição serviu como metáfora para a complexa e multifacetada realidade que nos cerca. Através de um olhar crítico e perspicaz, Ferreira apresentou trabalhos que questionavam a dicotomia entre a felicidade efémera do quotidiano e a angústia crescente diante de um futuro incerto.
Num formato experimental, a exposição transcendeu os limites da arte tradicional, reunindo obras que exploravam diversos meios, suportes, técnicas e materiais. Através de pinturas, instalações, esculturas e intervenções, o artista convidou o público a uma reflexão profunda sobre temas como a guerra, o meio ambiente, as questões sociais e políticas, a pandemia, as ilusões da vida moderna e, inclusive, o próprio papel da arte na sociedade.
Ao longo da exposição, obras esteticamente atraentes entrelaçaram-se com outras de carácter mais desafiador, todas marcadas por um tom interventivo e irónico. Essa mescla de linguagens e estilos criou um ambiente estimulante à reflexão, convidando o público a questionar as suas próprias percepções e interpretações da realidade.
UM TIGRE DE LOIÇA A RUGIR NA SALA
NA ARTE DE THIERRY FERREIRA
Alberto Guerreiro, Antropólogo
“Na vida, o essencial é fazerem-se juízos a priori sobre tudo. Com efeito as massas erram, como é evidente, e os indivíduos têm sempre razão. A tal respeito, é forçoso abstermo-nos de regras de conduta: para serem seguidas não devem ter necessidade de ser formuladas”.
Boris Vian, Prólogo de “A Espuma dos Dias” (1946)
Esta exposição, de forma feliz intitulada “A Espessura dos Dias”, alusão óbvia à obra-prima de Boris Vian, revela um conjunto de trabalhos que apesar de longe da partitura surrealista – como poderia sugerir a ligação ao autor francês – não deixa de demonstrar elementos desconstruídos e decompostos no espaço e tempo, onde se inclui o retrato do absurdo, tão caro a Vian. Ainda assim, o “nosso” artista está mais próximo do REAL do que da dimensão subconsciente do sonho e, nesse sentido, a opção do título não é mais do que uma desconstrução apelando a uma nova interpretação, uma nova observação sobre o que vemos. O próprio admite como mote de inspiração acontecimentos reais que na sala ganham forma por via de ensaios visuais carregados de ironia e intervenção ativista. Um ativismo não do ponto de vista político, mas antes através de uma caricatura sociocultural por via artística. Neste campo, é assumida a influência DADA, esta sim facilmente reconhecida não somente na evocação direta a Marcel Duchamp em elementos como a instalação “Theory/Concept” (diretamente apontada ao urinol de “Fountain”, 1917) ou “Musée de Termitage” (versão livresca de “La Boite-en-Valise”, 1935-1941), mas sobretudo na sua expressão mais radical com a peça do tigre de loiça a rugir (s/título) cuja intervenção artística se resume ao seu posicionamento e contexto na sala de exposição. O rugido deste tigre não é mudo. É a afirmação plástica de uma arte despida de regras, uma “não arte” (à boa maneira do movimento dadaísta), uma arte solta na independência estética e na insubordinação cultural que lhe está adjacente. Contudo a proposta é profundamente contemporânea cuja iconoclastia da ação não se resume à condenação da arte vigente ou à crítica social, sendo antes municiada por um condutor humorístico que aqui é potenciada por vivências íntimas, pessoais do artista. Trata-se de uma “arte alerta”! Alerta dos sentidos, obrigando o espectador a observar para lá do evidente, para lá da forma e função do objeto. Não será por isso ocasional que a exposição incorpore objetos pré-fabricados impondo uma observação revezada dos mesmos. A exposição demonstra o que já sabemos do artista: uma rutura com a pura estetização artística, optando antes por uma via conceptual, muito pessoal, diretamente relacionada com o seu percurso de vida e a sua experiência enquanto artista plástico. Nasce de um enlaço de liberdade criativa, respeitando um imaginário singular, mais subjetivo que objetivo. É por isso de não estranhar que esta exposição dispense a presença de um curador mediador do ato criativo uma vez que está intrínseca a própria liberdade do espectador no ato de observação, instruídos a parar e conduzidos a refletir sobre o que se vê, quando o que se vê é uma proposta que o retira da sua zona de conforto. Afinal, na arte de Thierry Ferreira, temos esse privilégio raro de nos confrontarmo-nos com a premissa de Boris Vian: “… é forçoso abstermo-nos de regras de conduta”.
Alcobaça, domingo – 14/05/2023
Para o Thierry_um ensaio em três tempos e uma pergunta
“Quando for grande quero ser um Pintor de telas”, é o titulo da exposição que aconteceu, entretanto, no norte do país, e onde somos levados a percorrer um conjunto de pinturas díspares no tempo de produção, mas coerentes no conceito, onde o artista convoca os incómodos da existência e se dá a conhecer, levemente.
O processo criativo vai acontecendo por associação e mergulho. Escrever sobre os processos de criação e a obra de artistas visuais, obriga a uma deslocação, a sair temporariamente da zona de conforto do mapa mental, ter disponibilidade para abarcar outros universos, complexos, dinâmicos e impermanentes, rever percursos e experenciar obras num tempo fugaz.
Sobre o Atelier de Curiosidades
O Atelier do Thierry é um gabinete de curiosidades contemporâneo, desenhado numa antiga dependência da casa dos avós. Não porque contenha objectos raros, preciosos, especiais, vindos de terras distantes, para serem exibidos, em móveis de madeiras exóticas, a Olhares Curiosos. Uma das salas é toda estruturada, não por móveis, mas por prateleiras com compartimentos díspares, para albergar uma diversidade de objetos-esculturas de vários tamanhos, mas principalmente por objectos curiosos, que recolhe – partidos, disfuncionais – para estudo de formas e texturas, em materiais diversos que fazem parte do seu processo criativo e inventivo.
Ficamos com vontade de puxar uma cadeira e permanecer ali. Primeiro a admirar, absorver, e depois para vasculhar! Os ateliers de artista são uma dispensa, um espaço de acumulação, um lugar de esperas, de possibilidades, com o qual se gosta de manter uma relação de proximidade. A curiosidade é uma das qualidades do artista, a forma como vê e observa o mundo, e o retorno desse olhar, dessa curiosidade, inquietação e desse espanto que trabalha e nutre para não se perder. É também pela capacidade de espanto que damos valor à arte. Uma criação, tem a potência desse espanto, se existir no processo a deriva que estimula o olhar plural e continua no espectador a intenção do artista. Uma espécie de processo de revelação de imagens latentes, que no curso do tempo ganha expressão e sentido.
No caso do Thierry, é o resultado do processo da sua prática artística em continuo, não é fácil descortinar o espaço entre o homem e a sua criação. A inquietação é, talvez, a palavra que melhor define o início dos seus processos de criação artística. O que vale uma pedra? Bem, a pedra serve de arremesso, e o artista tem varia sempre à mão. Saliento o projecto “Megafone”, em Faz ouvir a tua voz, a foto/performance, sequência em que o artista demostra como se arremessa uma pedra em contexto de manifestações públicas, chamando a atenção para o desconforto do lugar sentado, da inactividade, e estimulando a reação que estabelece o activista que existe em si, naturalmente.
O questionamento, que resulta da rejeição a priori, é uma constante sobre o que a sua envolvente lhe oferece. Na sua “acção” performática, esta rejeição do pronto a consumir surge mais alargada, é uma forma de estar, um “Reino dos Porquês”. A necessidade de entendimento, de rejeição do fácil, do incongruente, marca de forma constante a sua produção e o seu processo, tornando-o complexo e irónico.
A inquietação
Procurei-o no seu atelier, depois na sua horta. Encontrei-o em ambos. Nos últimos anos, esta relação entre criação artística e a arte de criar uma horta produtiva, tem sido dois grandes desafios para quem “Sempre quiz ser um Pintor de telas”. Questionei-me sobre o que é isso de ser pintor de telas? Como acontece a pintura na vida de alguém, e acima de tudo, ter esta consciência numa fase da vida tão precoce?
Há quem goste genericamente de Dançar. Recentemente falava com um artista congolês que dizia: “a nossa prática de Dança é a nossa escrita”. Forma de expressão muito natural. Esta ideia da Dança como discurso, como prática de escrita, baseia-se no movimento do corpo e na construção de frases coreográficas. Um corpo em movimento, a expressão do rosto, do olhar, das mão, a sua articulação com os sons, objectos, ou músicas, formas e cor. Ambas surgem da necessidade compulsiva de expressar, ora gestos, ora emoções. Os gestos tornam-se performance, ou caligrafia ou pintura.
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Um dos recentes projectos do artista é uma sequência de fotografias resultantes de intervenções num boneco de madeira, articulado, dos que se utilizam nas aulas de desenho para analise e estudo da proporção do corpo humano. Este personagem de madeira – e digo personagem de propósito – assume várias formas e assimila, no seu percurso, diversos objectos, metamorfoseando-se como um diletante na paisagem.
Trata-se efectivamente de meio boneco/homem, porque perdeu o torso, os braços e a cabeça. Foi recuperado por Thierry (do seu arquivo), que lhe deu novo sentido, passou a ser um caminhante, errante, sujeito as criações do artista que lhe devolveu uma existência frankensteiniana. Associando e justapondo a estas pernas expressivas tudo o que interpelava o seu caminho e lhe fazia sentido. Consequentemente, este personagem mutante, ocupou o atelier de forma surpreendente, tirando partido do aleatório e casual acrescentado sentido à vida, de uma metade de coisa: Homem lesma, Homem couve, Homem flor, etc.
Quando a ruína invade o atelier e habita a obra
A ideia de ruína, e da sua habitação, não é apenas uma inspiração para o Romantismo, considerando que encontramos obras/objectos que resultam de processos de apropriação distintos, em que os objectos surgem da ruína através do questionamento, como as grandes pinturas de Anselm Kiefer. Resultado de memórias, de revisitação de lugares, em que a matéria, talvez “essencial”, como as peças de madeira queimadas de Thierry, deslocadas no tempo, desafiam e ocupam o saber fazer da mão inteligente que domina o objecto com intuito expressivo. Os lugares habitados, ora na memória, ora em tempo real, existem num tempo interior que recusa o esquecimento. Uma espécie de dor ou dormência continuada, porque não resolvida. O incómodo da revisitação da memória urge resolver de vez, integrando a ruína. Incorporar na obra, os objectos queimados, dar-lhe novo sentido, é transfigurar o que importa. O fogo surge como elemento purificador. De regresso a uma casa do passado, resgata um conjunto de peças de madeira em casa da sua Avó, tempo primordial de infância. Então, pelo processo ancestral da queima controlada, utilizada pelos japoneses, confere-lhe resistência, e da-lhe uma nova existência.
Foi uma surpresa intrigante encontrar estas peças no contexto de uma recente exposição de Thierry Ferreira. No chão da galeria, organizadas de forma aleatória, mas controlada, os “objectos de retorno” surgem como evocação de acções que deixaram de existir, como o bengaleiro de madeira, o arco de suspensão do Porco durante a matança, os cabos de madeira das ferramentas esquecidas, gastas e partidas, as rolhas de pipas, entre outras peças difíceis de definir. O que é uma coisa preciosa? Podemos perguntar-nos perante estes destroços. Já foram preciosamente válidos, um dia, em qualquer momento, num lugar específico, pois viabilizaram acções, acontecimentos, risos dos momentos em família. Nas formas do tempo, a rememoração, espécie de retorno ao momento inaugural dos primórdios e das acções primeiras, à coreografia de gestos que conferem sentido ao Ritual cíclico dos trabalhos do campo, impede a destruição, o apagamento, a amnésia. A Ruína, evoca um tempo original, forte e belo, agora, no espaço da exposição, sublime.
O que resta da espessura do tempo?
A necessidade de recordar evoca e estimula a necessidade de Criação e produção, com base na rememoração de um tempo passado, do qual ficou uma impressão, feita memória. Na importância dos processos de reflexão, o artista pega, deita fora, exclui, incorpora, transforma, reinventa, contextualiza, ressignifica, ou confronta, rasga, queima. É uma revolução, uma catarse, essa força criadora, em que do caos surge a ordem, é uma constante nos dias lentos, ricos em camadas significativas de vivências, experiência, desejos, encontros. Desses encontros com as peças que povoam o seu atelier de curiosidade, Thierry, ironicamente, diz-nos como vê o mundo e lhe dá uma nova ordem, a sua, enquanto homo-faber. É muito valiosa e intensa, esta relação entre o olhar inquieto do artista, o Mundo e o seu pensamento. O espaço de exposição, tal como o atelier, é sempre um laboratório, um espaço para uma arte recombinatória, que transcende o espectador. Espantados, olhamos com surpresa objectos da contemporaneidade, apropriados e remediados pelos artista. Divergindo sobre os tigres de loiça, aos anúncios da Remax, passando pelas as Fotografias de Nuvens, tudo serve para o laboratório de ideias. Explorando relação, mas assim de tudo contradições, fugas ao lugar comum.
Recordo o projecto uma casa de praia. Na primeira exposição em que colaborei, com uma curadoria invisível é à distância, durante uma das raras visitas ao espaço de exposição, vi um conjunto de esculturas organizadas a uma canto. Quando questionado, o artista respondeu que eram esculturas no castigo. Durante três dias ele instalou o espaço da exposição. Tínhamos discutido algumas ideias em reuniões de trabalho que antecederam a exposição, e foi nesses momentos que contactei com o pensamento critico e criativo, e a sua capacidade inventiva para novas abordagens. Uma das peças que reencontrei na sala de exposição foi o projecto para uma uma casa de praia.
Esta peça é uma fotografia de larga escala, representa uma espécie de maquete de uma casa improvisada, desenhada sobre a areia, com paus trazidos pelo mar e organizando as divisões que identifica com uma legenda escrita sobre cartão.
Uma casa na areia, será uma casa na praia, apenas uma casa, no sentido do lar? Uma expectativa ambígua alimentada a cada grão de areia, com o tempo expressivo de vários pôr-de-sol?
A casa é um dos temas sistematizado na obra e na escultura de Thierry. Funciona como um leitmotiv e ganha expressão na diversidade dos materiais, ocupando o horizonte com construções que unem continentes, culturas e gerações. Uma casa – várias vidas.
Quanto tempo resta para a concretização do sonho? Apenas na espessura do tempo vemos a expressão das possibilidades. Pode o regresso surgir tão rápido como a ausência? O tempo consciente regressa automaticamente. Em que medida existe o tempo da ausência, considerando a sua dimensão instável?
O que faz um Vendedor de Sonhos com a sua caixa de ferramentas? Magia.
Ana David Mendes
Curadoria em Arte dos Media