Arqueologia do Ser

Arqueologia do Ser

24/02 >  21/04/2024

Banco das Artes Galeria, Leiria, Portugal

Textos: Helena Pereira e Pedro Pousada

Exposição “Arqueologia do Ser”: Uma Jornada Profunda ao Âmago da Existência Humana

Viagem ao Universo Criativo de Thierry Ferreira

A exposição “Arqueologia do Ser” é um convite irresistível para desvendarmos o universo criativo ímpar de Thierry Ferreira. Através de uma coleção de ensaios visuais magistralmente elaborados em diversos meios, como desenho, fotografia, escultura, instalação e vídeo, o artista nos convida a embarcar em uma profunda reflexão sobre a nossa própria existência, explorando nossos limites e possibilidades.

Desvendando o Processo Criativo no Núcleo 1

No piso 0, o Núcleo 1 oferece uma oportunidade única de mergulharmos no processo criativo de Ferreira. Lá, somos presenteados com um conjunto de “desenhos com defeito”, representações que abrangem desde esboços para esculturas até desenhos inacabados e anotações avulsas de ideias sobre o mundo. A beleza reside justamente na imperfeição, que os torna ainda mais ricos e expressivos.

Ao contemplarmos esses desenhos, somos convidados a desvendar as ideias e inquietações do artista, cada traço, forma e cor servindo como pistas para compreender a sua visão singular. É uma imersão profunda na expressão artística de Ferreira, que nos convida a refletir sobre a natureza da criação artística.

Explorando Temas Profundos no Núcleo 2

Subindo para o piso 2, o Núcleo 2 nos guia por uma jornada reflexiva sobre temas como a memória, a terra, a água e a cura.

Nas salas 2 e 3, deparamo-nos com uma série de fotografias e desenhos que retratam “memórias dissonantes”. Através dessas imagens, somos confrontados com a natureza subjetiva e imperfeita da memória humana, lembrando-nos de que ela é uma construção e não uma verdade absoluta.

Na sala 4, o vídeo “Linha de Água” nos convida a contemplar a beleza serena da natureza e a refletir sobre o nosso lugar no mundo. As imagens fluidas da água nos transportam para um estado de paz e contemplação, enquanto nos lembram da importância de preservarmos esse bem precioso.

Na sala 5, os desenhos de terra sobre lixa testemunham os impactos da ação humana sobre a natureza. É um convite à reflexão sobre a nossa relação com o meio ambiente e as consequências das nossas atividades no planeta.

Na sala 6, o “Armazém de Relíquias” reúne artefactos resultantes de escavações internas. Estes artefactos servem como uma metáfora da nossa própria existência, marcada por memórias, experiências e emoções.

Fechando o Núcleo 2, na sala 7, os vídeos “Nidificar” e “Cura” exploram a ideia de cura e transformação. Através de imagens poéticas e reflexivas, somos convidados a ponderar sobre a possibilidade de nos curarmos das feridas da vida e de nos tornarmos seres melhores.

Uma Experiência Transformadora

A exposição “Arqueologia do Ser” é mais do que uma simples mostra de arte; é uma experiência transformadora que nos convida a explorarmos a nossa própria existência, a refletirmos sobre o mundo e a encontrarmos novos significados para a vida. As obras de Thierry Ferreira, imbuídas de sensibilidade, profundidade e beleza, nos inspiram a questionarmos nossas crenças, valores e perspectivas, abrindo caminho para uma visão mais consciente e compassiva do mundo.

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Nudez e minimalismo: um olhar sobre a obra de Thierry Ferreira

No deserto pode-se caminhar durante dias, semanas e até meses sem ver outra coisa além de areia; ora bem, chega sempre o momento em que aparece um oásis maravilhoso que convida a parar e reabastecer. Por mais duro que seja o trajeto que leva a um oásis, qualquer oásis merece sempre o esforço do caminhante. É tal satisfação e a alegria obtidas ali que o caminho percorrido, não se torna árduo. Repostas as forças no oásis, torna-se a empreender um caminho em que não é invulgar que o caminhante volte a impacientar-se. É assim até que, de repente, quando menos espera – quase quando desespera –, volta a aparecer outro oásis. Pois é isto precisamente o que o deserto ensina: caminhar pela terra e parar onde houver água, e assim um dia após outro até chegar o momento e que se descobre que não só se ama o oásis como também o próprio caminho: ama-se a areia, a dificuldade.[1]

São subtis, mas essenciais as marcas de trilho que ligam as diferentes salas do Banco das Artes Galeria, em Leiria, que acolhem a exposição “Arqueologia do Ser” de Thierry Ferreira (FR, 1970). Subtis, mas essenciais porque ao ritmo dos passos e no contacto com a natureza, o artista expõe-se, permitindo-nos um contacto com o seu processo criativo e de pensamento onde a perceção do erro, a experimentação e o inacabado são constantes.

Há uma expetativa no encontro com a produção artística que nos remete para uma escultura de desenho limpo, que evoca a ideia de lugar habitado, mas permeável pela contexto, de formas simples, minimais e que contrastam com uma visão mais caótica dos dias. Encontramos Thierry Ferreira bem representado no espaço público nacional e internacional, devendo referir-se um currículo de mais de duas décadas, que inclui, depois da diáspora, a licenciatura e o mestrado em Artes Plásticas pela Escola Superior de Artes e Design do Politécnico de Leiria. Reside em Alcobaça e foi neste lugar de História que nos conhecemos, em 2021, e que ousei perder-me por um conjunto de obras que apresentava em espaço público. Registei o traço e decorei o modo: linhas que combinavam geometria e matéria, desenhos de cheio e vazio, ou seja, desenhos de escultor, desenhos de quem pensa com o espaço e para o espaço. Materiais industriais e a contemporaneidade dos assuntos que o afastavam de uma abstração e o aproximavam sempre do olhar em redor e da oposição à ausência de narrativa do minimal original.

Mas, ainda no currículo, talvez as exposições, individuais e coletivas, as participações em simpósios e em encontros internacionais de escultores, e sobretudo as obras que Thierry Ferreira tem desenvolvido para espaços públicos um pouco por todo o mundo e que vão de Hulan (China) às Caldas da Rainha (Portugal), passando, a título de exemplo, por Sept-îles (Canadá), Caransebes (Roménia), Teerão (Irão), Penza (Rússia), Julienne (França), Resistência (Argentina) ou Rawabi (Palestina).

Em todos estes momentos, o artista é, primeiro, um viajante, um caminheiro, preferindo descobrir os lugares através da travessia do corpo que deambula pela natureza e lhe descobre os mistérios. Quando caminhamos, quando peregrinamos, temos de confiar e seguir em frente mesmo que a sinalética não se renove. Não mudar de direção, mesmo que tudo pareça tortuoso e estranho. Confiar no deserto e acreditar no oásis. Como se de uma espécie de fé se tratasse, com ou sem crença nos deuses: fé no caminho. E as propostas que Thierry Ferreira tem acrescentado aos lugares por onde tem passado têm essa espécie de fé, o sentido da descoberta e a atenção ao tempo e ao espaço da paisagem, natural ou urbana. Na evidência dos lugares-comuns, a arte é uma forma de leitura, de reflexo da experiência do Ser Humano na sua relação espácio-temporal. Sempre me fascinou a forma como, da complexidade de todo este processo de descoberta, Thierry Ferreira conseguia aquela simplicidade, aquela agudeza e acutilância formal. Questionei-me muitas vezes sobre o processo e sobre qual seria o espaço do erro e o da experimentação absoluta até àquela síntese.

Thierry Ferreira, sobretudo em projetos de exposição individual em que é desafiado a interagir com o cubo branco da mesma forma que intervém na paisagem, opta por uma abordagem instalativa, com meta leituras, expondo, sem pudor da nudez, o processo e explorando outras disciplinas como o desenho, o vídeo ou a fotografia, que se revelam indispensáveis para lhe compreendermos os motivos e a essência.

Mas talvez nunca o tivesse feito como o faz em “Arqueologia do Ser” em que permite aos públicos, literalmente, escavar a sua natureza. A abordagem ao Banco das Artes Galeria e o percurso criado pela exposição merecem a primeira menção e definem um grande artista. O seu inacabado e experimental contrasta com a arquitetura que Ernesto Korrodi (Suíça, 1870-1944) legou ao lugar que nunca se desfaz da imponência. O primeiro desafio será talvez este: como anular ou não se deixar anular pelo edificado? Thierry Ferreira ousou assumir o erro, o processo ou o processo que leva ao erro e, talvez, à obra. Recordamos Samuel Beckett (IE, 1906-1989), quando nos diz: “Sempre tentei. Sempre fracassei. Não importa. Tente de novo. Fracasse de novo. Fracasse melhor.” Esta exposição poderia ser um texto, uma dramaturgia, um diálogo entre personagens ou um monólogo do seu autor com o que encontra no caminho, no tal ritmo do corpo que se perde entre os montes. E é por isso que a subtileza das marcas de trilho, mais do que arqueologia, é um desafio mais largo, a uma quase antropologia de tudo o que já conhecemos do artista e um indício do porvir.

Entramos. À esquerda uma primeira sala com a série “Desenhos com defeito” onde, de modo instalativo, apresenta uma seleção de desenhos e de experiências sobre papel, relacionadas ou não com obras posteriores, que preenchem o espaço e nos fazem mergulhar num emaranhado de detalhes. As linhas minimais são presença certa, prova de que o desenho como pensamento conduz à escultura como ação. Há um desenho da filha, deixando perceber que a vida de artista não tem portas ou muros, e que não se pode ser artista e ser, depois, outra coisa qualquer. É-se sempre artista, sem rutura ou intervalo. Os desenhos surpreendem-nos, não pelo defeito que lhes aponta o artista, mas pela riqueza de palavras, de mensagens, de detalhes, de pontos, linhas, planos, figuras, colagens, sobreposições. Ainda assim, é de enorme risco que se comece uma exposição com a fragilidade do exercício diário e não se tente impressionar o espectador com a obra acabada, a grande obra da consagração. Perguntamo-nos, logo ali, se ela virá ou se esta “Arqueologia do Ser” é mesmo sobre o ser, sobre a essência, com a nudez necessária e um outro tipo de minimalismo.

Mas o princípio de arqueologia, que me parece bem expandido para algo mais etnológico, por um lado, e antropológico, por outro, acentua-se pela presença da memória trazida pelos objetos da casa da infância, pelas alfaias da lembrança de outrora. Ao cimo das escadas, há essa espécie de ready made, em que o artista se aproxima do conceptual, sem perder a dimensão de autodescoberta que, a dada altura, sentimos dominar o que nos é mostrado. Tudo em madeira queimada numa instalação que ocupa um vértice, um recanto, dominado pelo azulejo e pela ornamentação do lugar, outrora banco, hoje galeria. Não obstante, a leitura de Thierry Ferreira permite que ocupe e domine, também visualmente, o inusitado contexto.

Seguimos para nos encontrarmos com a fotografia em diálogo com outras pequenas esculturas de madeira queimada. Ainda o jogo das impressões manipuladas, ampliadas. Em “Memórias dissonantes” a fotografia, que se permite à luz que entra pelas portadas, tem o olhar do artista sobre as esculturas espontâneas que encontra nas tais caminhadas, nos percursos pelo monte em que tenta esvaziar a mente do ruído e enchê-la de motivos. São olhares de uma sensibilidade indescritível, simples e que não escondem a procura das tais linhas que lhe conhecemos da escultura.

Segue-se “Linhas de Água” com um vídeo de imagem múltipla, onde a água desenha a forma e em que o som da água nos lança o desafio da imersão e do silêncio. Voltamos a’ “O Amigo do Deserto” e à meditação da viagem, da procura. O vídeo tende a ser mais próximo da escultura, sendo a fotografia mais da pintura. O que é relevante na produção de Thierry Ferreira é que há sempre espacialidade e terceira dimensão, também na fotografia e na forma como é feito o registo do que se observa. Há alma de escultor e isso tem uma marca própria, não obstante de, ao longo deste caminho pelas salas de exposição do Banco das Artes Galeria, nos serem apresentados diferentes motes e modos.

A surpresa e o espanto estariam guardados para “Terra sobre lixa” em que desenhos sobre lixa dialogam com os objetos encontrados e transformados, formando dípticos imediatos, com ligações cruzadas. Há um enorme jogo de vides em suspenso, que liga visualmente desenhos e objetos e que nos coloca também em suspenso. O artista apresenta os seus receios sobre o conjunto de obras expostas, confessando a espontaneidade e a experimentação, e que inverteu a função da lixa que agora é suporte e não ferramenta. A cor da terra domina como nunca e as cores daquelas caminhadas feitas na Serra da Estrela e noutros locais lusos, não são apenas catarse visual, mas resultado, espelho do vivido. Lembro-me das cores de Joaquim Rodrigo (PT, 1912-1997), do traço de Ângelo de Sousa (MZ, 1938-2011) ou da arte ecológica de Alberto Carneiro (PT, 1937-2017), mas não me desligo da premissa inicial da linha minimal com que Thierry Ferreira povoa o espaço público. Os artistas também se analisam pela riqueza das referências a que nos remetem, pelas viagens pela História da Arte que nos proporcionam e em “Terra sobre lixa”, conjunto de obras que merecia não se dispersar, mais do que uma expansão, há uma síntese do que é esta “Arqueologia do Ser” e da vontade que o artista teve em trazer também futuro e novidade com ela.

“Armazém de Relíquias” é um pedaço do atelier do artista, das suas maquetes e de pequenos formatos que contam a diversidade das suas estórias e criações: mármores e outras pedras, madeiras, metais. Lembram a grande galeria de geologia do Museu de História Natural de Londres, com os objetos expostos em estante e a negar o plinto que não lhes serve. A obra final, pela qual nos questionamos desde “Desenhos com defeito”, está por aqui, mas sem formalismo, sem a postura oficial da exposição. Antes devolvendo-nos ao local de criação de Thierry, ao seu refúgio onde, simultaneamente, tomamos nota da multiplicidade de materiais e tecnologias que conhece e explora e da qualidade técnica que emprega.

Terminamos com “Nidificar/Cura”, onde regressa o vídeo, testemunho de uma residência artística na Ilha do Pico, nos Açores. Outra vez a caminhada, a natureza e o vídeo que capta a descoberta. No final do percurso, não nos sentimos perdidos, antes inquietos. Apetece ver tudo outra vez, voltar a ler as breves notas que o artista forneceu nas micas, saídas diretamente da capa de argolas da escola de outrora. Sem pretensiosismos e ou tentativas de parecer, até porque esta exposição é sobre o que se é, sobre quem se é, não sobre o que parece.

Atender, por isso, às palavras deste caminho, soltas, sem ligação: arqueologia, ser, desenho, defeito, memória, linha, água, armazém, terra, relíquia, nidificar, curar. Apetece escrever uma história e adivinhar só através do que se viu, do que se leu, sem ser preciso o tal currículo que, ainda assim, é só uma evidência da excelência do artista. Apetece escavar, não o artista, mas quem somos e quem vemos de nós em tudo isto. “Arqueologia do Ser” é uma exposição surpreendente, despretensiosa, rica e livre de Thierry Ferreira. É uma hipótese sobre os caminhos da experimentação e a importância do processo para a produção artística contemporânea. E, com atenção e rigor, ajudar-nos-á a dar sentido às suas obras em espaço público, aos seus vestígios de eternidade que, depois disto, merecem a atribuição de um minimalismo poético, exponencial e atemporal.

 

Helena Mendes Pereira

[1] d’Ors, Pablo, O Amigo do Deserto. Quetzal Editores, 2019. Página 161 e 162.

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Forma e indefinição na prática artistica de Thierry Ferreira. Notas à margem.

 

É sempre um enorme risco tentar construir uma aproximação hermenêutica a partir do que Yve –Alain Bois descreve como uma “estética da causalidade” ou uma “monologia positivista” em que a obra artística é o somatório de uma série de operações conscientes e controladas[1]. Parafraseando o jornalista e poeta austríaco Karl Kraus (“Quanto mais de perto olhamos para uma palavra, tanto mais de longe ela nos devolve o olhar[2]”): quanto mais de perto observamos e minuciamos a obra de um artista quanto mais de longe ela parece “falar” para nós.Talvez o truque seja mantermos essa “fala” da obra próxima de nós, relativizando como uma “diferença na repetição”, um “tilintar dos sinos”, a nossa incursão analítico-hermenêutica na obra. Observando criticamente o trabalho artístico, mas convivendo com a evidência do irredutível: não existe uma chave interpretativa mas um distanciamento da interpretação.

Por outro lado não há maior temor para um artísta – penso em particular naqueles que querem continuar a organizar a sua obra num auto-estranhamento permanente; aqueles que querem fugir dos seus próprios clichés- que ser vítima de uma hiperdefinição do seu trabalho. É o caminho para tornar irrespirável a atmosfera dessa plasticidade porque torna-se, apenas, o efeito redundante de uma causa primeira e inalterada e não um processo histórico de influências, apropriações, reinvenções e refundações.

É verdade que os artistas apreciam quando alguém se empenha em construir uma glosa sobre o seu trabalho mesmo que lhes possa causar estranheza ou dificuldade em estabelecer uma concomitância, uma relação direta entre a palavra escrita e a sua obra.

E escrever sobre os artistas, questionar a sua obra, identificar constantes, repetições, alterações metodológicas e temáticas, perceber a transição do protótipo (da inovação, da invenção do novo, do diferente a partir da história, da tradição ou da sua rejeição) e deste para a estereotipia e a redundância, são processos de análise qualitativa essenciais para a história da arte e para a teoria da arte; são processos que legitimam e prolongam hermeneuticamente a obra (para além de si própria). Um prolongamento que tem os seus riscos de banalização ou de hermetismo como já vimos.

O que sabemos é que a imersividade, a perda no interior da imagem pintada, do desenho, do vídeo, da escultura, da instalação, é sempre uma perda virtual, nunca existente: com efeito, ninguém entra dentro de espelhos à exceção de Alice. O interlocutor envolve-se com um sistema de crenças, suspende a sua incredulidade, aceita a sua passividade mesmo que possua uma dimensão participativa e o texto é invariavelmente a demonstração prática desse mergulho teatral e da dificuldade concreta em conectar duas subjetividades que se manifestam e existem em materialidades muito diversas. A conexão se existe é simultaneamente de uma sobrenaturalização mitológica e de uma franqueza imanente e mundana. Promete um além poético mas encanta-se com a materialidade do imediato.

O “Étant donnés: 1° la chute d’eau / 2° le gaz d’éclairage”,  (1946-1966), a obra póstuma de Marcel Duchamp parece acentuar a crise de um sentido absoluto não só da obra artística mas da realidade que a contextualiza. Com efeito nela nada está garantido nem mesmo as variáveis do problema (o visível e a imagem do visível são as cobaias da experiência duchampiana). Duchamp problematiza a representação como uma assemblage cultural, e por isso como um excesso de aproximação, (um close up desastroso) à realidade, à sua materialidade e polissemia; um excesso que oculta o essencial e que parece limitar a visualidade ao que é da ordem do visível – não há síntese nem unidade estilística nos materiais presentes na composição duchampiana. “Étant donnés” exprime com toda a premência a separação entre o artifício da arte – jogo de espelhos, de reflexividades, de ilusões: manifestação da impossibilidade do verismo porque em arte tudo são mecanismos, automatismos, citações e normas-, e a organicidade da vida, a sua deriva pulsional entre desejo e morte, entre plenitude e finitude, entre necessidade e utopia.

A Arte Contemporânea é uma negociação coletiva e plural entre linguagens expressivas por vezes antagonistas, outras vezes colaborativas, mas uma negociação que já superou a promessa teleológica do devir da arte; não haverá desenlaces superlativos[3], nem fins de história, nem correntes artísticas soberanas mas realinhamentos constelares de empirias, de práticas e perspetivas multidimensionais que se tentam descolar, quase sempre sem êxito- como, aliás, aconteceu, também, no modernismo-, daquilo que Roland Barthes designa pelo “purgatório mitológico” dos artistas: a classificação, “o nome comum”[4].

No espaço-tempo contemporâneo apercebemo-nos do acontecimento artístico como sendo cada vez menos a coisificação poético-expressiva de uma subjetividade focada na sua auto- historicização – em ser moderna, em ser parte de uma ideia comum de mudança, de alteridade artística- e cada vez mais um interface de olhares onde a produção e o consumo disputam o impenetrável, o indizível; um interface de estruturas reflexivas e auto-reflexivas, de aparatos imagéticos, empenhados em presentificar o outra vez incessante da arte. E neste outra vez, no mais uma vez, a dança entre a autonomia artística e o fim da arte, entre o artista-herói e o artista em queda livre e consciente do e no todo social será sempre uma dança interminável de identidade e de incompletude.

Falamos, então, de um processo de mediação que tanto explora uma ideia, um conceito como tenta, parafraseando Louis Althusser, chegar, -ao contrário da ciência, diz-nos ele-, a “conclusões sem premissas”[5]; no ponto do vista do processo artístico e da sua finalidade- da possibilidade autoral da obra- isto significa aceitar o inútil, a pesquisa sem resultados, o inconclusivo, os paradoxos, as incongruências e hesitações dilatórias do projeto como momentos criativos, momentos onde a verdade e a ambiguidade produzem efeitos plásticos, sensoriais, e estímulos intelectuais, conceptuais tão pertinentes e necessários como o conhecimento científico para a consciência de si e do mundo que cada um de nós necessita de construir.

A exposição de Thierry Ferreira agrega e problematiza estas valências: é declarativa, mas sem a expetativa de um retorno- isto é, os objetos “falam”, são forças testemunhais de um algo mais e evidências de um aqui e agora anti-utilitários e marcados pelo incompreensível- esta exposição é uma das possíveis coerências sintáticas dessa fala. Percebemos que mais do que o artista são as obras que não querem dar respostas nem esperam respostas-poderá haver um ethos, a crise antropocénica, as alterações climáticas, o fim deste modo de viver mas a opacidade semântica da iconografia exposta não se dissipa nessa glosa; as obras usam uma hibridização de plasticidades e de modos linguísticos-  preessentimos em algumas imagens a auto-referencialidade da abstração modernista, noutros casos os objetos polarizam a sua imanência nas diferentes nuances históricas do “objet trouvé” -o “readymade”, A “assemblage” e os “objetos a reação poética” pontuam a qualidade heteróclita mas tecnicizada do conjunto; entre os procedimentos visuais e de telegenia, o saber fazer manual e o digital não definem hierarquias: entre eles não há um mais ou um menos mas uma continuidade. Há desenhos “imperfeitos que reunem o repertório gráfico-expressivo da “studio practice”; há uma acumulação de apontamentos gráficos, de desenhos que se  dividem entre o anti-mimético e o elemento icónico; nestas primeiras paredes  detectamos o fascínio histórico dos artistas (Arnold Hauser dixit[6]) pelo esboceto, pelo inacabado, pelo fragmento. Podíamos situar esse enlace estético pela desarmonia e incompletude do desenhar- e pela exposição em sucessão, em montagem justaposta dos desenhos- como a liminaridade que precede a desmaterialização: a pan-visualidade que, aqui, se enuncia não é o ponto de chegada do invísivel, (daquilo que está no fora de campo da ocularidade) mas o início de uma viagem poética e plástica que terá na desmaterialização a sua finalidade. Os desenhos indicam esse entre-espaço, esse interstício liminar em que as coisas começam a ser imaginadas mas ao mesmo tempo são refractárias a um entorno, a uma forma definitiva cristalizando-se como vestígios de operações. Afinal observamos desenhos imperfeitos porque são, intencionalmente, a manifestação de uma incompletude ou observamos um esforço pessoal para tornar o essencialismo da prática criadora num acontecimento estético?

O título “Arqueologia do Ser” sugere  que este agenciamento de formas artísticas é um estudo dos estratos e disrupções do Ser; essa possibilidade coloca-nos diante de um problema empírico: como é que a construção histórico-cultural do autor se encaixa nas conceções essencialistas do Ser? Já notamos que, historicamente, o autor, qualquer um, não é único e inteiro mas uma multiplicidade de momentos históricos e é assim que a hiperdefinição, o “purgatório da classificação”, são atenuados na auto-etnografia, na narrativa pessoal. A consciência de um sujeito criador é, debalde toda a teatralidade curatorial que ensaia- por via de um nexo narrativo-  uma aparência de ordem, é, dizia, a manifestação de uma hesitação e de uma incompletude. O artista está simultaneamente enfatuado com o processo criador e  com a criatura (a obra) que fabricou e é essa cinemática que o permite autonomizar a experiência do atelier da obra em si e  permite que esta se prolongue para além de si.

Ao introduzir-se o antigo (o arquétipo) como designio epistemológico, como logocentrismo introduz-se, também, a evidência do obsoleto, do que cessou a sua eficácia; e resgatamos o Ser de um conceção cristalizada, intemporal (sem história) e trans-histórica (atravessando incólume as unidades dos tempos longos). À arqueologia associamos  invariavelmente a ideia de escavação, de um polimento, de uma limpeza prolongada e paciente, de uma parametrização. Mas se é relativamente fácil adicionar o título às obras expostas e admitir que presta um serviço simbólico à curadoria  como é que ele encarna o aqui e agora do método criativo? E como é que a obra se salva de ser apenas um significante deste título poderoso e aporético? Não pretendo responder, não sei como.

Com esta exposição Thierry Ferreira demonstra-nos que a atomização das hipóteses artístico-expressivas não é uma ameaça ao valor autoral da obra mas a confirmação que é  através de um entendimento criativo e dialético dos materiais e das ideias artísticas que se potencia a singularidade. Há, aqui, uma sensibilidade que joga com os seus limites e testa as convenções do seu próprio saber fazer artístico – os vídeos demonstram-nos isso. Observamos que o seu material videográfico existe na dupla função de documento e fição. Observamos uma volição construtiva mas casuística, o ponto zero, radical da tradição artística -ocupar e humanizar um espaço natural com o conceito de ambiguidade- e um vitalismo peripatético. Thierry grava-se num ambiente isolado, a trabalhar nas margens do inútil poético, da ação cuja finalidade é o incompreensível, jogando a ideia de harmonia e de permanência. Vêmo-lo escolhendo pedras e erguendo num arranjo intuitivo muros no entre espaço de àrvores num bosque algures nos Açores. Vêmo-lo a caminhar sem horizonte, sem forma, sem fundo, sem paisagem.

A sala dos vídeos, desenlace do percurso curatorial parece rematar a sensibilidade da dúvida que solidariza a exposição- o que mostrar? Tudo? Como mostrar? Num estertor casuístico que aproxima o caos controlado do atelier -com as suas dúvidas, medos e determinações-do “glacé” estético da exposição? Imitar as incongruências e indecisões do atelier? Imitar a des-historicização da arte praticada pelas vanguardas e mostrar, enunciar, indicar o instante irreversível em que o processo artístico – o seu em particular- se institucionaliza – se congela- como obra? Verificar as coincidências e contradições dos dois momentos? A verdade desses dois momentos auto-imunes?

Nesta experiência curatorial, existe o detalhe do mapa afectivo- o prazer de fazer “imagens fortes”, de respirar os vapores do conhecimento artístico dimensiona o valor simbólico dos materiais expostos-; vemos a deposição controlada do arquivo (mas de um dispositivo proprioceptivo e não sistémico, um relicário de estruturas tridimensionais) a funcionar como força logocêntrica e como uma faktura, ambas em luta contra o decorativismo, uma luta nem sempre fácil; é possível fazer associações simbólicas entre estruturas dissonantes, entre o fabricado e o orgânico (ou aparentemente orgânico): há fotografias posicionadas entre o anti-narrativo e a analogia e trabalhadas, interferidas, alteradas pela manualidade e pelo digital; há pequenos objetos – uns encontrados nos despojos de outras vidas, outros manufaturados como estudos para projetos escultóricos e que entretanto se autonomizaram; o repertório de coisas inúteis e ao mesmo tempo inescapáveis; pressentimos a secularização tardo-moderna do gabinete de curiosidades: o relicário de pequenos objetos avulsos (mas amados pelo seu criador), valendo pela sua evidência material e simbolizando a fragilidade da plenitude artística, dividida entre a vacuidade e a totalidade.

Não existe, portanto, uma filiação purista e especializada no trabalho artístico de Thierry; a condição artística coloca-se simutaneamente como uma decisão privada e como um problema público (um problema de “edição” das centralidades disciplinares geradoras de ideias e questionamentos dessa condição: o site-specific, a performance, o desenho, a imagem em movimento, a escultura). Há um percurso expositivo feito de faltas e de presenças, de estruturas que são necessárias para que a unidade ou a sua falta sejam entendidas como um questionamento do excesso de consciência (ou auto-complacência ?) estética do mundo. É este, talvez o desenlace do meu contributo: a complexidade material, poética e  visual de Thierry Ferreira é um sintoma desta crise: a estética invadiu tudo e foi invadida por tudo, a autoperfeição criadora adquiriu um protagonismo mórbido e derrisório mas apesar destas contradições que parecem sugerir que a volição artística é um ente vivo o que esta crise nos indica é que essa volição funciona como uma estrela que morreu há muito tempo mas continua a arder e a brilhar no futuro que já não existe.

 

Pedro Pousada

 

[1] Yve-Alain Bois, Painting as Model. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1993, p.216.

[2] Karl Kraus apud Walter Benjamin, Imagens de Pensamento, sobre o haxixe e outras drogas.Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 133.

[3] O paradigma insuperável, best of the best, da criação artística tornou-se irrelevante: por exemplo, as “Brillo Boxes”(1964) de Warhol e o “Nosotros Afuera”(1965) de Peralta Ramos levantam questões igualmente importantes no reposicionamento da condição artística. É, assim tão fundamental definir uma como fronteira e outra como epifenómeno?

[4] Roland Barthes, O Óbvio e o Obtuso.Lisboa: Edições 70, 1984, p.93.

[5] Louis Althusser, Lenin and Philosophy and other Essays. New York and London: Monthly Review Press 1971, p. 224.

[6] Arnold Hauser, História Social da Arte, Volume III. Lisboa: Editorial Estante, s.d. pp. 96-97.

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