drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha

Branca. Poda. Chão.

Branca. Poda. Chão.

BRANCA. PODA. CHÃO.

Ato Abstrato | 15 janeiro a 18 fevereiro 2022

 

Em casa de Ferreiras, espeto de quê?

 

O nosso comunicado de imprensa para esta exposição fecha assim: Movidos pela energia de três palavras, artistas e curador desfiamos, na Ato Abstrato, o diagnóstico irredutivelmente individual de um momento da humanidade, celebrando a cumplicidade e a empatia que, consciente ou inconscientemente move a arte como palco público para o mais íntimo quando tornado comum.[1]

 

Perdoem-me o linguajar! Às vezes sai assim. Mas é em tempos apocalípticos que se tornam mais vitais os gestos mais simples. Há palavras que são mais baratas do que parecem. O luminosamente obscuro e o solidamente comum podem edificar uma perspectiva mutuamente enriquecedora. Esta foi a ideia inicial para esta exposição de ferreiros.

 

O João (R.), num percurso quase secreto, é uma criança irresponsável, trabalhando com o que encontra (nos mais vários sentidos do termo). Desenha, permeografa, (ar)risca. Chama ‘Merdas’ ao meu filho de quatro anos, num registo de uma doçura radical que nem eu nem a mãe conseguimos reproduzir. É um artista puro. O Thierry – mais rodado a atravessar fronteiras geográficas e sobejamente exposto nos circuitos do métier – acumula uma experiência rara que é o maduro saber-fazer continuamente aplicado à experiênciação do espaço. Puro artista. E ajuda-me a falar com a minha nogueira.

 

O que nos une? Amor puro. São já anos de conversas que vou tendo com ambos, nenhum de nós jamais obcecado com quaisquer outputs concretos. Os encontros passaram por fritadas de peixe na cidade mais a Sul deste canteiro à beira-mar plantado, ou a inenarrável prática do golfe nas margens do maior lago salgado da Europa. A omelete no Clube de Vela estava aliás divinal e abriu uma conversa de que já surgiu um primeiro objeto-processo, precisamente A vida é uma poda, na Revista 33 [no prelo há uma boa temporada]. Ali se lê, ao abrir-se o caderno:

 

Curador procura artista. Artista aceita curador.
Estão prontos para virar a página.
Lá fora, pedras e árvores são objectos-sujeitos. Interrogam-nos.
Cá dentro, esboços sobre o erro.
Nos bastidores da consciência.
Limiares de vulnerabilidade.
A procura das formas da luz.

 

Claro, falámos, eu, o Thierry e o João, não apenas de arte (pouco), mas de mulheres e de putos (muito). Dos pequenos-nadas que constroem o mito da amizade. E sobretudo do que não fazer à vida. No meio de tudo isto, a gravidade ia fazendo o seu trabalho e começou a fazer sentido mostrar-se algo. Temas ganharam peso. Cumplicidades fizeram das suas. E assim, ao convite da Ato Abstrato, respondemos com o alargar da mecânica que aplicámos a um par de exposições e experiências editoriais em que já nos tínhamos envolvido: o João em mostras como a na Caparica ou a do VICENTE, o Thierry em mostras que se avizinham (lá, está, uma é na Caparica).

 

O ménage à trois (na verdade, ao escrever a primeira versão deste texto, os dois Ferreiras nem se conheciam pessoalmente) ocorre portanto, finalmente, no momento em que na Ato Abstrato a Maria João e o JoH concordaram em expor a materialidade destes diálogos íntimos e a que inéditas e novas obras agora dão corpo. Sem manifesto. Mas manifestamente o reduto de posições perante a arte e a criação que merecem ter esta exposição. Que são expressão do humano genuinamente plástico. Que para mim fazem parte de um processo crucial: cartografar e reinventar o mundo a partir do que se memoriza, do que se encontra, do que se desenha, do que nos move. E resto são tretas. Merdas.

 

– x –

 

Ora, entretanto, estes varridos convidaram o curador a expor. Por razões que um dia procurarei compreender, aceitei. E assim, à Branca do João R. e à Poda de Thierry se junta o Chão, de Mário.

 

Nascia um triplicidade específica em que convergem, da parte do Thierry, um conjunto de peças pequeno formato – escultura, desenho, fotografia, objectos, que de modo oblíquo vão ao encontro não apenas da ideia de poda, mas do título como um argumentário e desafio não apenas conceptual, mas propriamente terapêutico; a ideia de museu, que conheço bem no modo de Thierry continuamente articula cada obra sua com todo o resto de sua produção (é visitar-se o ateliê para se grocar esta consistência), é aqui mais uma vez explorada, em mais uma fase crítica (como todas) de uma carreira brilhante;

 

da parte do João R., são apresentados um vídeo e um desenho – este branco, ausente, uma branca, mais espaço que coisa; aquele resultado de um precioso resgate: retratos fotográficos da década de 60/70, encontrados numa loja de fotografia abandonada, foram completamente pintados de branco numa técnica semelhante à do ‘estalado’ na pintura a óleo, e depois filmados em stop motion– o artista assim transmutando a progressiva deformação da imagem, função de uma reação química, num extraordinário filme de almas encontradas;

 

da minha parte, exponho (!?) exempla dos meus encontros com o chão, num terreno de jogo de que atualmente cuido. Flirt entre o achado e o lixo. Morte-vida através de gestos simples, ridículos, mas que nesta fase da Vida (e do Mundo) se me ocorrem como serviços mínimos, nesses termos singelos testemunhos do olhar, visando celebrar a dignidade do ver, no caso o que o chão nos tem para dizer.

 

 

Fui artista durante um par de semestres nos anos 80, antes do charme do design me seduzir (e da sedução da literatura me conquistar). A presente mostra é um modo de eu homenagear dois artistas loucamente justos para com os seus processos criativos, e que por isso mesmo procurei expor aqui na Ato Abstrato do JoH (junto de quem expus pela primeira e quase única vez).

 

Nesta séance, três palavras-chave desvelam, em síntese, fundamentais desafios culturais. O palco é belo, uma verdadeira ilha de espontaneidade, e a essa benção nos dedicámos de um modo que expõe, mais do que coisas (feitas), processos (em aberto). Não é disso que, como Humanidade, estamos finalmente a tornarmo-nos capazes? Partilhar o parto?

 

Termino de novo com os pés no chão (com a forma como abre o nosso comunicado):

 

Tão básico e infantil, inocente e fundamental. Três modos de escrever são, ao mesmo tempo, a coragem de mostrar o mais ínfimo de cada um de nós numa totalidade (que é inédito desafio para todos) e um ousado assumir de uma palavra-chave para que o debate com o público se inicie. O todo é mais poético que as partes.

 

Mário Caeiro

Janeiro de 2022

[1] https://www.agendalx.pt/events/event/chao/

 

 

drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha

 

 

Branca

Estamos com uma. Deixamos submergir, individualmente, e como espécie. É ao mesmo tempo um espaço, um vazio, um branco. Tão somente um estado (de espírito)? E em que medida podemos aproveitá-lo? Nos desenhos do João, somos transportados através do branco até uma sucessão de objetos e figuras humanas, cenas de uma narrativa ausente, peças de um puzzle que de imediato desistimos de completar. Fragmentos de uma linguagem sem desejo de veicular um nexo (a não ser o de que é altura de convocar os olhos para uma tensão muto subtil entre o traço – a preto – e a mancha – a cor –, protagonistas destes episódios de uma memória coletiva exausta de referências e de cruzamentos entre as mesmas, que se acumulam hoje até nos tornarem espectadores de nada. O que aqui aparece

é o que sobra de uma mente quando se resgata no exercício. O fragmento secreto como sagrado coração do João, ao ponto de ser possível vislumbrar o que sobra de uma obsessão, de um labor, de uma memória íntima. Podemos imaginar esse link. Que tem isto de público? Sobretudo a sua minimal mecanicidade, lembrando-nos que ser artista é muito mais fácil – e portanto, mais difícil – do que parece.

Pois que o que está em causa é parar o gesto, para começá-lo. Começá-lo para precisamente pará-lo. E saber, claro, quando é que é altura de deixar a folha em branco, e o branco em folha.

Cada desenho tem muito de sonho, momento neutro na brancura da memória (pessoal e coletiva, até porque todos sabemos que existem ‘coisas’ tipo Napoleão
e ‘tons’ tipo verde) – mesmo que pôr um esquema anatómico a sair da cabeça
da personagem não lembre a ninguém! Tem tudo isto de absurdo íntegro, porquanto na órbita da meditação. Trata-se de brincar ao desenho enquanto tabuleiro
de composições. O artista habitando as tensões plásticas que assume: vazio vs. presença, sentido vs. o surreal, o infantil vs. a maturidade. Nenhum desenho tem
a sorte de sequer ter nome. Mas têm todos data: 2021.

No vídeo, de 2010, uma sequência/conjunto de retratos em composição/decomposição, o nome filtro para acedermos ao humano para além da imagem plana. A sessão para que somos convocados é a que resulta de um achado. Uma caixa de fotografias abandonada nas ruínas de uma loja em Caldas da Rainha (onde o João foi nascido e criado). Gerou uma relação de entrega, até ao dia (distante) em que se esgote o acervo de interações possíveis com aquela gente. São retratos (tirados nos anos 60) que acompanham o artista há muito tempo, uma família que ele revisita. O João não quer parar o filme, estão à espreita uma centena de almas, esperando a vez para ser este cinema. Por ora, 6-7 negativos foram pintados de preto e a progressiva deterioração dessa cobertura, fotografada ao longo de minutos – uma reação química instantânea – dá origem a um retrato do próprio tempo, na sua relação com a brancura. Pleno vazio.

Mário Caeiro

Janeiro de 2022

 

drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha

drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha

drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha

 

 

Poda

Essencial. Crítica. Vital. Problemática. A poda é nesta exposição algo mais que uma metáfora, mas menos (mal de nós!) que um conceito filosófico (armado aos cucos). Se calhar o termo é simplesmente uma plataforma discursiva-performativa onde curador e artista ancoraram o seu desejo comum de trabalhar a partir de noções solidamente éticas, políticas e plásticas, passíveis de serem traduzidas para as narrativas da comunidade. É uma gazua para irmos a jogo de novos desafios civilizacionais – tendo em conta como o gesto de podar é, ao limite, um modo de dar vida à vida.

 

Thierry é (re)conhecido como escultor de referência. Artista plástico com particular capacidade de interrogar o espaço público com uma linguagem feita de atravessamentos (possíveis, por parte de quem se aproxima) e cores subtilmente abstratas (em constante diálogo com cada novo lugar que é ocupado). As suas peças são, por um lado, perfeitamente identificadas enquanto objetos subtilmente inusitados – são arte, daquela que se percebe de imediato enquanto tal (o que é hoje manifestamente raro de conseguir, com tão generosa fluidez); por outro lado, suas obras assumem funções espaciais que geram vivências em aberto (mais do que meras constatações). Provocam, mais do que são.

 

Quando o visitei no ateliê, Thierry mostrou-me o backstage das suas peças mais pesadas – onde a gravidade faz das suas –, a sua floresta de maquetas e o jardim de incontáveis desenhos preparatórios – onde a liberdade de imaginar as formas é particularmente precisa nos seus movimentos; tudo aquilo fez faísca com uma conversa inacabada que tínhamos acabado de começar, sobre a vida (e a arte) como aproximando-se (ou não).

 

Nasceu dessa conversa uma primeira aventura. Dezasseis páginas que nos foram confiadas pelo Nuno Fragata e a equipa da Revista Três Três. Uma espécie de catálogo-poemário, qual íntima troca de galhardetes entre obras e comentário, percurso e filosofia, imagem e palavra. A Vida é uma poda.

 

Surge, agora, aqui na Ato Abstrato, esta forma de mostrar o Thierry: desenhos preparatórios (off) dialogam com obras concluídas (peças), fragmentos de projetos no e para o espaço público com exercícios secretos precisamente sobre o erro. É disto que a arte hoje mais precisa, de se mostrar (revelar) como processo dialógico, território conversacional, labirinto de hipóteses, sendo que o ato de podar, esse, tem uma única auctoritas, a do/a artista, neste caso espelho profundamente desafiante do curador-observador-público que com ele tem… partido pedra.

 

Mário Caeiro

Janeiro de 2022

 

drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha

 

drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha

 

drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha

 

Chão

Pisamos. Nele somos enterrados. Parte de nós. Fala connosco a um ritmo que tendemos a ignorar. É onde melhor ouvimos a gravidade.

Nestas obras (sic), (de)mo(n)stro exempla de encontros com o chão. Flirt entre
o achado e o lixo. Morte-vida através de gestos simples, ridículos, nesses termos assumindo uma arrogante humildade. Resgate do que não teria valor, num registo contemplativo, ambient remix do quotidiano rural.

Alguns atos autonomizam-se no processo e teatralizam a coisa: o queimar,
o martelar, o deixar ficar, tudo ações (e sobretudo não-ações) para que o fazer seja o pensar ao nível mais direto, básico, imediato, previo a qualquer craft e antes procurando desvelar os mais singelos mecanismos da fé. Seus augúrios.

Trata-se de brincar ao limiar da criação, ao momento do encontro estético (well,
e filosófico), que exprime a minha potência mas também, dramaticamente, meus limites. Não é qualquer pessoa que tem capacidade para criar e agir no seio da arte. O Jung fugiu com o rabo à seringa. A narrativa, na arte, exige máxima concentração. Por outro lado, apenas alguns tem lata/hubris/coragem de mostrar
os seus encontros; místicos, ao final. Limito-me aqui a rezar convosco.

 

Mário Caeiro

Janeiro de 2022

 

drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha

 

drawing, Project, sculpture, model, public sculpture, public art, architecture, contemporary art, art, Thierry Ferreira, design, installation, sitespecific, photography, video, Landart, sardenha